“Não queremos ser um nada, nós somos pessoas”

A frase resume o desabafo de dois cadeirantes de Mandaguari que, entre obstáculos diários e falta de estrutura urbana, cobram respeito e o cumprimento de direitos garantidos por lei.

Apesar dos avanços legais registrados nos últimos anos, a acessibilidade ainda está longe de ser realidade em Mandaguari. A Constituição Federal e a Lei Brasileira de Inclusão (LBI) garantem às pessoas com deficiência o direito à mobilidade e ao uso pleno dos espaços públicos e privados, mas o que se vê na prática são barreiras físicas e culturais que dificultam a vida de quem depende de cadeira de rodas ou de qualquer outro recurso de locomoção.

Rampas fora de padrão, calçadas irregulares, ausência de banheiros adaptados, falta de fiscalização em obras e até abandono de equipamentos instalados pelo próprio poder público fazem parte do cotidiano. O problema, porém, não se restringe apenas a cadeirantes, idosos, gestantes, pessoas em recuperação médica e pais com carrinhos de bebê também enfrentam as mesmas dificuldades.

A legislação brasileira é considerada avançada no papel. A Lei Brasileira de Inclusão, em vigor desde 2016, estabelece que todas as cidades devem garantir acessibilidade plena em espaços públicos, privados e nos sistemas de transporte. No entanto, em Mandaguari, como em muitas cidades de médio porte, a distância entre o que a lei exige e o que se aplica é abissal.

Segundo especialistas, o problema não está na falta de normas, mas na ausência de fiscalização e na demora para adaptar a infraestrutura já existente. A construção de novas praças e prédios públicos deveria, obrigatoriamente, seguir os parâmetros da acessibilidade, mas na prática nem sempre isso ocorre. A denúncia de cadeirantes evidencia essa contradição: o direito existe, mas a cidadania não chega às ruas.

Em entrevista ao Jornal Agora, dois moradores de Mandaguari, Paulo César Dianin e Williams César de Souza, compartilharam suas histórias e relataram os desafios que enfrentam diariamente para exercer um direito básico, o de ir e vir.

Paulo César Dianin de 63 anos, sabe bem o que significa ver a vida mudar de forma repentina. Até poucos anos atrás, levava uma rotina ativa, conciliando família, trabalho e atividades comunitárias. Tudo se transformou quando recebeu o diagnóstico de uma doença súbita, que afetou sua mobilidade e o levou a depender da cadeira de rodas.

A mudança não foi apenas física, mas também emocional e social. Antes mesmo da própria limitação, Paulo já havia feito adaptações em sua casa, pensando no conforto dos sogros idosos. Hoje, são essas mesmas adaptações que lhe permitem manter alguma autonomia no dia a dia. “Foi um choque. Aquilo que eu pensava estar fazendo pelos outros acabou se tornando essencial para mim. Só quando a gente vive essa realidade é que entende de verdade o que é enfrentar barreiras”, contou.

Paulo lembra que o impacto inicial foi duro, reaprender a se mover, readequar espaços, lidar com a falta de acessibilidade fora de casa e com a ausência de empatia em muitos ambientes. Aos poucos, a experiência o transformou em voz ativa pela inclusão. “A gente passa a enxergar detalhes que antes não reparava. Uma calçada quebrada, uma rampa feita de qualquer jeito, um banheiro sem acessibilidade… coisas que para outros passam despercebidas, para nós viram obstáculos intransponíveis.”

Se para Paulo a mudança é recente, para Williams César de Souza de 51 anos, a luta já dura um quarto de século. Há 25 anos, um acidente mudou sua vida e o colocou definitivamente na cadeira de rodas. Desde então, o desafio de se locomover por Mandaguari é constante.

Williams recorda que, no início, acreditava que a cidade evoluiria mais rápido em acessibilidade. Participou de reuniões, acompanhou promessas de autoridades e viu projetos serem anunciados, muitos deles, porém, nunca saíram do papel. “Já ouvi muita promessa. Já vi ideias bonitas em discurso, mas que não chegaram à prática. É desanimador, mas não dá para desistir. Sem pressão, nada muda”, relatou.

A longa convivência com a deficiência fez de Williams um observador crítico das falhas do poder público. Ele cita exemplos que considera inadmissíveis, a Prefeitura com um elevador instalado, mas nunca colocado em funcionamento, e clubes e mercados que não oferecem condições mínimas de acesso. “É frustrante porque a lei existe, mas ninguém fiscaliza. Então as obras são entregues fora do padrão e seguem assim, como se fosse normal”, disse.

Apesar das dificuldades, Williams não se limita à denúncia. Ele participa de ações comunitárias, busca diálogo com vereadores e sonha em ver Mandaguari tornar-se exemplo em inclusão. “A cidade precisa mudar de mentalidade. Acessibilidade não é gasto, é investimento em cidadania”, defende.

Barreiras que limitam a cidadania

As histórias de Paulo e Williams se entrelaçam em um mesmo ponto, a falta de estrutura em Mandaguari limita direitos básicos. Rampas construídas sem respeitar normas técnicas, calçadas irregulares, prédios públicos sem acessibilidade e espaços privados despreparados se acumulam no dia a dia dos cadeirantes.

“O que mais vemos são rampas feitas de qualquer jeito, calçadas quebradas e espaços públicos que não consideram nossas necessidades”, afirmou Paulo. Williams reforça: “A falta de fiscalização é o principal problema. As obras são entregues fora da lei, e ninguém cobra. Isso acontece há anos.”

Recentemente Paulo usou a tribuna livre da Câmara onde levantou questões recorrentes, a infraestrutura de Mandaguari, apesar de avanços pontuais, ainda não atende às necessidades das pessoas com deficiência. É comum encontrar calçadas quebradas ou desniveladas, rampas improvisadas e até espaços públicos recém-reformados que não seguem normas de acessibilidade. A situação se agrava em locais de grande circulação, como escolas, unidades de saúde e repartições municipais.

Além disso, o transporte público da cidade continua sendo uma barreira quase intransponível. Ônibus sem elevadores adaptados, pontos de parada sem cobertura e ruas esburacadas tornam o deslocamento praticamente inviável. Para muitos cadeirantes, resta apenas a dependência de familiares ou de transporte particular, realidade que reforça a exclusão e limita oportunidades de trabalho, lazer e convivência.

Os entrevistados destacam que o tema não deve ser tratado como pauta exclusiva das pessoas com deficiência. Segundo eles, qualquer cidadão pode se beneficiar de uma cidade adaptada. “Acessibilidade é para todos, idosos, gestantes, pessoas que passam por cirurgia e precisam usar muleta, mães com carrinho de bebê. Uma cidade adaptada é melhor para qualquer pessoa”, destacou Williams.

Para além das obras, Paulo e Williams defendem que a mudança só será efetiva com educação e conscientização. Eles acreditam que campanhas permanentes precisam ser realizadas, começando nas escolas e se estendendo a toda a população.

Eles citam países como Japão e Canadá, onde a acessibilidade é tratada como parte da cultura cidadã. “Aqui em Mandaguari ainda é comum ver pessoas estacionando em vagas reservadas sem precisar. Sem multa, sem fiscalização e sem campanhas educativas, isso nunca vai mudar”, disse Paulo.

Outro ponto abordado pelos cadeirantes é a falta de continuidade em projetos voltados à inclusão. Para eles, muitas iniciativas não passaram do discurso. O elevador da Prefeitura é citado como exemplo, foi instalado, mas nunca funcionou de maneira adequada, até acabar desativado.

“Esses gestos simbólicos não resolvem nada. O que precisamos são ações reais e de longo prazo”, destacou Williams. Paulo acrescenta, “O que mais desanima é ver que a cidade avança em outros aspectos, mas a acessibilidade continua sendo empurrada para depois.”

Apesar do desânimo de parte da comunidade, os dois acreditam que a união pode fortalecer a cobrança por mudanças. Eles defendem a reativação da associação local de pessoas com deficiência, que há anos está inativa. O objetivo é organizar demandas, ampliar a voz do grupo e pressionar autoridades.

“A gente entende o desânimo de muitos, porque as promessas nunca foram cumpridas. Mas precisamos retomar essa luta. Se não nos mobilizarmos, nada vai acontecer”, disse Paulo.

Ao final, o recado dos dois é direto, mais do que adaptações estruturais, o que pedem é reconhecimento social. “Não queremos ser um nada, nós somos pessoas. Temos vontade, desejos e queremos ser respeitados”, concluem Paulo e Williams.

A luta pela acessibilidade também expõe uma ferida social mais profunda, a invisibilidade das pessoas com deficiência. Muitas vezes, cadeirantes e outros cidadãos com mobilidade reduzida não são lembrados no planejamento urbano, nas políticas públicas ou até mesmo nas conversas cotidianas.

Essa ausência simbólica, quase um apagamento, reforça a sensação de que suas necessidades não importam, como se vivessem à margem da cidade, sem direito de participar plenamente da vida comunitária. Para Paulo e Williams, essa invisibilidade pesa tanto quanto as barreiras físicas, porque é ela que alimenta o descaso e perpetua a exclusão.